quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

O MISTICISMO CRISTÃO





Na celebração do V centenário do nascimento de Santa Teresa de Ávila (1515-2015)





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O MISTICISMO CRISTÃO

Pelo misticismo o Homem busca alcançar uma realidade suprema, tendo como fim último a união com Deus. Dispõe-se afectiva e intelectualmente, por intermédio da oração, da contemplação, da reclusão ou ascetismo, pelo despojamento das coisas do mundo e pelo amor, a concretizar o “matrimónio” da sua alma com a do Altíssimo.
Numa primeira abordagem, dir-se-á que pode assumir características de libertação – no budismo –, de identificação – hinduísmo e neoplatonismo –, e teístas – judaísmo, cristianismo e islamismo.

A tradição mística cristã é de uma riqueza incontestável.
Como advogam Mircea Eliade e Ioan P. Couliano, o misticismo cristão abrange praticamente todos os métodos conhecidos. Nesta perspectiva, o estudo dos místicos das várias Igrejas, nomeadamente da Católica e da Ortodoxa, será de grande proveito aos que prosseguem a vereda da espiritualidade, sem prejuízo das adaptações que façam como consequência das suas próprias crenças ou objectivos. 
Vamos encontrar métodos similares na espiritualidade hindu, no vedanta, no ioga samkhya, no tauismo chinês, no budismo Mahayana, entre outros.

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Paulo, já esboça os primeiros elementos místicos do cristianismo, quando aspira veementemente a uma relação directa e imediata com Cristo, o Filho de Deus.

Em regra, a experiência mística tende para a união com Deus, no esquecimento do corpo e das “coisas” do mundo, sendo uma vivência da religiosidade individual. Pela experiência mística-religiosa, Deus é encontrado no coração de cada um, no próprio interior purificado do místico.
Hans Kung refere que a autêntica mística, não se circunscrevendo ao cristianismo, “comporta a experiência de unidade da minha pessoa com a realidade omnímoda, última ou suprema, com o Absoluto, entendido como Deus, Brama, darma ou nirvana – Aquilo em que creio.

Karl Rahner escreveu que “o cristão do futuro será um místico ou não será” – Schriften zur Theologie, XVI, 1980. Esta expressão deverá ser entendida cum grano salis, sob pena de desmotivar intenções e afastar ideologicamente da religião cristã um conjunto de crentes alheados de uma espiritualidade exigente, mas que perseguem os ideais éticos do cristianismo. Já não nos referimos, aos denominados cristãos-ateus-práticos, que vivem tão afastados e esquecidos de Jesus que na sua existência e a cada passo agem como se Ele não existisse. Daí a famosa frase de Gandhi: “Amo o cristianismo, mas odeio os cristãos, pois não vivem segundo os ensinamentos de Cristo”. 

Orígenes, dá-nos inicialmente o quadro interpretativo de uma tal experiência.
Terá nascido no ano 185 ou 186, em Alexandria, e morreu mártir com 69 anos de idade. Foi tal como Plotino, discípulo de Ammonius Saccas, que é considerado por muitos o verdadeiro fundador do neoplatonismo.
No ano de 230 é ordenado, para no ano seguinte ser excomungado.
Castrou-se voluntariamente, numa interpretação literal do texto evangélico, não obstante a condenação da Igreja de tal interpretação.
Talvez tenha sido Orígenes o primeiro filósofo a empregar a palavra misticismo para traduzir o conhecimento directo de Deus.
Segundo ele, não há ser que não possa obter a salvação, inclusivamente Satanás.
Recusa a doutrina da ressurreição da carne.
Foi condenado por via de quatro heresias:
- a doutrina da preexistência das almas – vide Platão;
- que Cristo já detinha antes da encarnação a natureza humana;
- após a ressurreição, os corpos não serão mais materiais, mas integralmente etéreos;
- todos podem atingir a salvação, inclusivamente o Diabo.

Dionísio, o Aeropagita, foi convertido ao cristianismo, e foi discípulo do Apóstolo (por vocação) Paulo. Persevera no carácter imperceptível de Deus, daí poder ser denominado teólogo negativo ou apofântico.
No entanto, segundo Nicola Abbagnano, “Pelos princípios do século VI começam a ser conhecidos e citados alguns escritos cujo autor se qualifica como Dionísio, aquele que, segundo os Actos dos Apóstolos (XVII, 34), foi convertido ao cristianismo pela prédica do apóstolo Paulo diante do Aerópago. Motivos internos e externos demonstram que tais escritos não podem remontar para lá do fim do século V e que, portanto, a sua atribuição a Dionísio é impossível. Na verdade, a fonte principal destes escritos é o neoplatónico Proclo (418-485)”. 
Com ele é fundada uma nova feição de misticismo, que sem deixar de ser extática, se assemelha à mística do “vazio” existente no Budismo – dele procede o conceito de Teologia Mística.

Mestre Eckart, fundador da mística alemã, nasceu por volta de 1260, em Hochheim, pertenceu à ordem dominicana. Em 1326 foi-lhe instaurado um processo por heresia, tendo-se retratado das suas doutrinas antes de falecer em 1327.
A sua obra concentra-se na fé, visando constituir a unidade essencial entre o homem e Deus. Serve-se da teologia negativa do Aeropagita, tal como Escoto Erígena o havia feito – Deus não tem nome, já que não há quem o possa entender.
Diz-nos que é absolutamente necessário aprofundar o nosso relacionamento com Deus, buscando-o na parte central da alma, onde Ele se nos revela como divino, na sua natureza e verdadeira essência. Aqui, dá-se a união entre a alma e Deus, alma que não se anula – o homem é Deus por graça, e Deus é Deus por natureza. 

João Tauler (1300-1361), tal como Henrique Suso, foram discípulos de Eckart.


As obras do Carmelita João da Cruz (1542-1591), inspiradas na mística extática de Teresa de Ávila (1515- 1582), têm também origem no modo teológico negativo.

Michel Meslin, L´Expérience humanitaire du Divin, ensina que é praticamente impossível separar o misticismo do amor pelo misticismo do “vazio”. Vazio, que inúmeras vezes nos surge como uma fase no caminho da união, e que pode ser comparado à “noite escura” – v.g. S. João da Cruz

Podemos também falar de um misticismo especulativo, que desagrega e faz progredir os estádios da experiência mística, patente na obra de João Clímaco (séc. VII), autor de L´Échelle (Klimax) du Paradisobra onde alvitra uma graduação da experiência mística em 30 etapas – e na do místico Franciscano, Boaventura de Bagnoreggio (1221-1274), autor de L’Itinerarium mentis in Deum.
Foi influenciado por Santo Anselmo, tendo feito “renascer” o argumento ontológico demonstrativo da existência de Deus.
Para S. Boaventura, a fé é superior à ciência. Pela fé atinge-se a verdade, enquanto que a ciência se limita a aniquilar a dúvida.
Considera que a alma que se conhece a si mesma, conhece Deus, sem que haja auxílio ou intervenção dos sentidos. Deus é a origem de tudo, realizando a criação a partir do nada.
A alma, criação de Deus, entidade que anima o corpo – doutrina platónica –, é substância espiritual distinta deste, e como tal não está sujeita à corrupção e é imortal, tendo por fim último alcançar a beatitude no seio do Ser supremo.
O êxtase é a união do homem com o seu criador, estado em que participa da sua essência. 

Debrucemo-nos agora em S. Tomás de Aquino (1225-1274), no nosso entender o maior dos filósofos escolásticos.  
S. Tomás foi desde sempre um filósofo que recebeu os maiores méritos e reconhecimentos da Igreja. Foi canonizado pelo papa João XXII no ano de 1323. Durante as sessões do Concílio de Trento, a sua fama de teólogo universal, fez com que a Suma Teológica fosse colocada no altar, lado a lado com a Bíblia. S. Pio V proclamou-o em 1567 Doutor da Igreja, e as suas obras eram as aprovadas por praticamente todas as universidades teológicas – católicas. Em 1879, o papa Leão XIII, na encíclica Aeterni Patris, exaltou os méritos do teólogo, propondo-o como inspirador da teologia a ensinar em todas e quaisquer instituições do mundo católico, considerando-se o seu sistema como o único verdadeiro. Esta proposta foi recolhida pelo Código de Direito Canónico de 1918, e no Concílio Vaticano II, bem como no Código de 1983. Estranha atitude de consagração de uma obra, que o próprio autor desprezou – vide infra.
No dia 6 de Dezembro de 1273 – festa de São Nicolau de Bari –, três meses antes da sua morte, enquanto celebrava missa no convento de Nápoles, S. Tomás experimentou uma espécie de êxtase, após o qual abandonou a escrita da sua obra mais conhecida, a Suma Teológica, obra que estava a terminar. A partir daí, não escreveu mais uma única linha. Questionado pelos monges de tão estranha atitude, respondeu: “Já não posso mais, porque tudo o que escrevi me parece palha”.

Bacon foi denominado “Doctor mirabilis”. Frade franciscano, teólogo, alquimista e místico, pode ser considerado um percursor da ciência moderna, não obstante tenha vivido no século XIII. Tinha a paixão das ciências. Julgou a lógica inútil e considerou ser a matemática a única fonte de certeza não revelada.
A sua investigação – tendo em vista a experiência externa – incidiu sobre a astronomia, a matemática, a história natural, a óptica e a gramática.
A investigação interna corresponde à via do misticismo, que engloba sete graus:
- da iluminação científica;
- das virtudes;
- dos dons do Espírito Santo;
- das bem-aventuranças;
- dos sentidos espirituais;
- da paz de Deus; e
- do êxtase.

A mística do amor é segundo Thomas de Kempis (falecido em 1471), uma Imitação de Cristo.

Podemos ainda considerar a existência de uma mística feminina, que Mircea apelida de mística da eucaristia – “para elas, a eucaristia, na qual Cristo se transforma em pão, torna-se o símbolo da sua transformação: renunciando ao alimento, estas místicas transformam-se a elas próprias em alimento”.

Na Igreja Ocidental o misticismo progrediu em quatro frentes fundamentais, que apesar de tudo, acabam por se aliar, ainda que parcialmente. Já falámos da teologia negativa, de uma mística do amor, da especulativa, e da eucaristia, assim apelidada por Mircea e que tem o feminino como maior representação. Na Igreja Oriental, o mundo Ortodoxo assume um carácter mais técnico com a doutrina hesicasta fundada por Gregory Palamas (1295-1359) que evolui no sentido de exercícios, respiração e meditação (oração do coração) que lembram métodos hindus e do Sufismo.
Para além da oração do coração, ainda podemos falar da “oração perpétua”, onde o nome de Jesus é repetido incessantemente como um mantra. Uma das fórmulas – ou mantra – muito utilizada pelos religiosos, que é repetida sem cessar, “Senhor Jesus tende piedade de mim”.


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Na Igreja Católica, os místicos foram perseguidos pelo Santo Ofício da Inquisição.
Margarida Porete foi queimada em 1310. Mestre Eckart, S. João da Cruz e a própria Teresa de Ávila sofreram perseguições e foram alvo de suspeições.

É de todo natural, que místicos, homens e mulheres da Igreja completamente desprendidos das coisas e vantagens materiais, Ordens mendicantes e de pobreza, que buscavam antes de tudo a imitação do Jesus evangélico, fossem alvo de uma instituição rica e poderosa, muitas vezes viciosa, imoral e criminosa. “Bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz, não faças o que ele faz”.
Estes Santos, despidos de toda a ambição e apegos, amorosos devotos de um Cristo pobre e humilde, palavra da sua própria palavra, exemplo do seu exemplo, foram incómodos espinhos cravados nos calcanhares de uma Igreja com pés de barro.
Não se justifica fazer desfilar exaustivamente os sucessivos factos, que demonstram inequivocamente a corrupção de uma Igreja opulenta, onde grande parte dos seus dirigentes viveu durante séculos na plena abastança, cercados por uma miríade de vícios que à carne tanto prazem, queimando ou excomungando a seu bel-prazer os indesejáveis, e sendo autora material, moral, ou cúmplice das maiores atrocidades e violências, desde que de tais actos lhe adviessem vantagens – infra, (A Taxa Camarae…) procurámos descrever, ainda que muito sinteticamente, o tempo em que Teresa de Jesus e João da Cruz viveram, o que de algum modo explica as perseguições de que foram alvo.

A Igreja de Roma deveria ter aprendido com os seus erros, e com as múltiplas ofensas que fez à pessoa de Jesus.
Seria reconfortante, que o Vaticano fosse mais do que um santuário de riqueza, ostentação, opulência, corrupção, grupos secretos de interesses e palavras vãs, tudo ao arrepio dos ensinamentos daquele que invocam como o seu Deus.

Devemos esquecer o passado, aceitar as desculpas dos erros e pecados de uma Igreja historicamente pecaminosa, à imagem do homem, mas apenas quando surgirem no horizonte “sinais” de verdadeira mudança, num sincero arrependimento. No fundo, é isso que a própria Igreja advoga para os seus fiéis. 
Se à grande maioria dos fiéis basta um papa, por muito santo que pareça ou seja, a nós não nos satisfaz a mera aparência institucional encarnada num único homem, falível como os demais – não iremos aqui discutir, por despicienda, a declaração feita no século XIX da infalibilidade do papa, pelo Concílio Vaticano I. 
Já o dissemos muitas vezes: “As palavras não são as coisas”. A forma do fruto é boa, mas continua a esconder, ainda que a contragosto, uma substância interior pecaminosa e degradada. 
Se “o pecado começa na igreja”, terá de ocorrer nela, em primeira instância, a purificação da sua própria alma.
Ratzinger renunciou para ir para a reclusão. Julgo que muito poucos o entenderam. Também eu tenho optado pela reclusão possível, e não sou o papa Ratzinger, nem sou possuidor das suas motivações e conhecimentos.
Que da Igreja, de qualquer Igreja, de qualquer religião seja ela qual for, se exaltem os frutos não corrompidos, e desde que não seja possível a sua reabilitação, sejam transformadas em cinzas as árvores estéreis e rejeitados os frutos apodrecidos e contaminadores.  

***

Não se interpretem as minhas palavras como um mero ataque gratuito ao Cristianismo, à Igreja Católica, ou a qualquer outra instituição. 

Tal como o Profeta Job, com os mesmos desejos e angústias, tenho dito para mim:
“Assim como o servo deseja a sombra, e como o jornaleiro espera o fim da sua obra, assim eu tive os anos (o profeta refere meses) vazios e contei as noites trabalhosas para mim. Se dormir, direi: quando chegará o dia em que me levantarei? E logo voltarei a esperar pela tarde e serei cheio de dores até às trevas da noite” (VII, 2).
Não há noite, por mais tormentosa e virulenta, que a janela do meu coração não fique aberta. Espero com humildade e sinceridade, que em qualquer momento, antes da hora do meu passamento, que O que tiver de vir, se assim Lhe aprouver virá, ou mostrar-se-á no Castelo Interior, preenchendo o vazio do meu espírito, aceitando o facto de que a minha vontade é um nada no tudo da d'Ele.

Que o exemplo de Francisco de Assis, entre outros, e dos Doutores da Igreja Teresa de Ávila e João da Cruz iluminem as Religiões do mundo, a Igreja Católica e os homens de boa vontade.



JOSÉ MARIA ALVES

(BLOGUE PESSOAL)

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